O JEITINHO BRASILEIRO
Urda Alice Klueger
Em Blumenau existe a crença geral de que estamos numa cidade alemã
no Brasil. Cidade alemã? Estou inteiramente convencida de que isto é um
total engano: Blumenau, como Joinville, como Brusque, como tantas
outras cidades brasileiras taxadas de alemã, é uma cidade portuguesa no
Brasil, cidade portuguesa como leves laivos alemães em coisa como a
arquitetura, o folclores, etc. Penso assim desde que conheci Portugal, o
bom e velho Portugal, placidamente adormecido em cima das glórias do
passado, lá do outro lado do Atlântico.
Vou retroceder um pouquinho, contar como é que as coisas acontecem
pelo resto da Europa que conheci.
Nos outros países da Europa o que é lei é lei, o que é norma é norma.
Exemplificando: é proibido vender qualquer coisa dentro dos trens, a não
ser o que se pode comprar nos vagões-restaurante. Não adianta querer
dar um jeitinho nisso; se você está viajando de trem e não levou o seu
próprio lanche junto, sua única alternativa para não passar fome é comer
o que há no vagão-restaurante, não importa se você goste ou não da
comida do país onde você se encontra. Impossível encontrar-se um
vendedor de qualquer coisa em estações ou vagões - nem passa pela
cabeça deles que há lugares, como na América Latina, onde, em cada
parada de um trem, pode-se comprar, dentro ou fora dele, desde milho
assado até relógios Made in Japan, passando pela cocadas e pela
medalhinhas de Nossa Senhora Aparecida. A Europa é assim, e a gente
pensa que "dar um jeitinho" é coisa de terceiro-mundista, de gente
atrasada como nós.
A gente pensa assim até chegar a Portugal.
Vou contar exatamente o que aconteceu quando cheguei à pátria-mãe.
Vinha eu de quase um mês sem falar português, e quando peguei um
trem em Paris, com destino a Lisboa, achei que estava no céu, com toda
aquela portuguesada a me tratar na palma da mão (os brasileiros são o
orgulho deles - caso dos dentistas é mero detalhe), a falar a minha língua
(claro que para algumas palavras é preciso pedir tradução), e a querer
saber das novelas brasileiras (o que vai acontecer com Odete
Reutmann?). Quase um mês sem falar a bendita língua da gente é dose,
eu quase entrei em delírio ao entrar naquele trem, e por pouco não morri
de tanto conversar. O trem saiu de Paris pelas dez da manhã, e eu
conversei, conversei, conversei, inventei finais para todas as novelas que
não tinha assistido, mal prestei atenção aos românticos castelos do Vale
do Loire, de tanto conversar com a portuguesada. Foram, assim por
baixo, umas quatorze horas conversando sem parar, e lá pela meia-
noite, sem dúvida que eu estava exausta.
Fomos todos dormir, na nossa cabine de seis pessoas, já em terras
espanholas, e até ali, tirando o meu orgasmo falador, tudo continuava
muito europeu, muito certinho, nada a ver com este nosso Brasil
maravilhoso.
Fomos dormir à meia-noite; às duas da madrugada, paramos na fronteira
de Portugal. Foi aquela paradinha de nada, só para conferir os
passaportes já previamente escolhidos, e acho que nem teria acordado
se aquela fronteira não fosse de Portugal: no primeiro metro do país que
nos gerou, toda a organizada Europa pareceu ter ficado para trás.
Mulheres às pencas invadiram o trem, onde é proibido vender qualquer
coisa, a anunciar em altos brandos:
- Rebuçados e caramelo! Rebuçado e caramelos!
Irremediavelmente acordada pelo tumulto, minha curiosidade aflorou: o
que seriam rebuçados? Só para não deixar o leitor curioso também,
conto o que se seguiu. Saí da cama às pressas, com medo de perder de
saber o que significava aquela palavra nova, e lá estavam as
portuguesas por todo o corredor do trem, no maior alvoroço às duas da
madrugada, vendendo... balas! Balas iguaizinhas às nossas daqui, e
quando eu disse que aquilo eram balas, os portugueses estranharam
muitos: balas, para eles só as de revolver.
Não estava com apetite para rebuçados, mas não voltei a dormir: era
bom demais ver aquela gente com jeito de nossa gente, aquele alvoroço
irreverente, aquele jeitinho brasileiro acontecendo na velha Europa.
Começava a descobrir, ali, que o jeitinho brasileiro era o jeitinho
português. Era extasiante começar a perceber, naqueles primeiros
metros de Portugal, porque é que nós os brasileiros, éramos como
éramos.
As vendedoras vendendo sem receio algum os seu rebuçados num trem
que entra em Portugal, coisa impossível de se ver nos outros países por
onde andei, eram apenas um detalhe desse pequeno/grande país que nos
fez nascer. Portugal todo é cheio de surpresas, a cada passo vamos
descobrindo que a nossa identidade é a identidade deles. Como, hoje,
não andar pela Rua XV de Blumenau, e não reparar nos prédios de
arquitetura portuguesa que existem em muito maior número, na nossa
cidade, do que os pouco prédios em estilo enxaimel? Como não ficar
lembrando da boa gente portuguesa a cada vez que um descendente de
alemães da minha cidade fica tentando "dar um jeitinho"? E, os alemães
de Blumenau "dão um jeitinho" como qualquer outro brasileiro, sem
terem a menor idéia de que seu "jeitinho" vem lá do corajoso Portugal,
aquele pequeno país que um dia teve a coragem de enfrentar o grande
mar-oceano e mudar a história do mundo. Alemão de Blumenau não é
alemão de Alemanha - é, com muito mais força, alemão de Portugal. O
que quer dizer, é alemão-brasileiro.
Por estas e por outras é que afirmo: Blumenau não é uma cidade alemã
no Brasil. Nem Brusque, nem Joinville. Somos cidades - e muito, e bem -
portuguesas.
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Urda Alice Klueger
historiadora, arqueóloga, escritora
Membro da Academia de Letras de Santa Catarina
Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina
Blumenau
urda@flynet.com.br
link: http://www.riototal.com.br/coojornal/urda004.htm
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deem opiniões... :wink:
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